segunda-feira, 8 de novembro de 2010

O Meme literário de um mês - Dia 09

Dia 09 - A melhor cena que você já leu


Diferentemente do que ocorre com os filmes, eu não tenho uma cena (ou trecho) favorito de um livro. Existem sim, várias passagens que eu gosto, mas não tenho uma favorita. Por isso, assim que vi a lista com todos os dias do meme, imaginei que o dia de hoje seria um dos mais complicados para mim. Isso foi até começar a ler A sombra do vento. Ainda não terminei a leitura, mas me apaixonei pelo livro nas primeiras páginas.

Faço questão de transcrever um trecho da obra que eu achei incrível, apaixonante, e que tenho certeza que vai despertar a atenção e a curiosidade de todos os participantes do meme, como bons amantes de livros que somos. O trecho é um pouco longo, mas leiam, vale realmente a pena. Em negrito os meus trechos favoritos:

"O tal Isaac nos convidou a entrar com um leve assentimento. Uma penumbra azulada cobria tudo, insinuando apenas os traços de uma escadaria de mármore e uma galeria de afrescos repleta de figuras de anjos e criaturas fabulosas. Acompanhamos o vigia através daquele corredor palaciano e chegamos a uma grande sala circular, onde uma autêntica basílica de trevas jazia sob uma cúpula esfaqueada por focos de luz que desciam desde o alto. Um labirinto de corredores e estantes repletas de livros se seguia da base até a cúspide, desenhando uma colméia em cuja trama viam-se túneis, escadas, plataformas e pontes que deixavam adivinhar uma biblioteca gigantesca, de geometria impossível. Olhei para meu pai, boquiaberto. Ele me sorriu, piscando o olho.
- Daniel, bem-vindo ao Cemitério dos Livros Perdidos.
Salpicando os corredores e as plataformas da biblioteca se podia ver, perfiladas, uma dezena de figuras. Algumas delas se viravam para cumprimentar de longe, e reconheci o rosto de vários colegas do meu pai do grêmio dos livreiros de sebo. À luz de meus dez anos aqueles indivíduos pareciam uma conspiração de uma confraria secreta de alquimistas, com as costas viradas para o mundo. Meu pai ajoelhou-se ao meu lado e sustentando o olhar me disse, com essa voz delicada das promessas e confidências.
- Esse lugar é um mistério, Daniel, um santuário. Cada livro, cada volume que você vê, tem alma. A alma de quem o escreveu, a alma dos que o leram, que viveram e sonharam com ele. Cada vez que um livro troca de mãos, cada vez que alguém passa os olhos pelas suas páginas, seu espírito cresce e a pessoa se fortalece. Faz já muitos anos que meu pai me trouxe aqui pela primeira vez, este lugar já era velho. Quase tão velho quanto a própria cidade. Ninguém sabe ao certo desde quando existe ou quem o criou. Conto a você o que me contou meu pai. Quando uma biblioteca desaparece, quando uma livraria fecha as suas portas, quando um livro se perde no esquecimento, nós, guardiãos, os que conhecemos este lugar, garantimos que ele venha para cá. Neste lugar, os livros dos quais já ninguém se lembra, os livros que se perderam no tempo, viverão para sempre, esperando chegar algum dia às mãos de um novo leitor, de um novo espírito. Na loja, nós os vedemos e compramos, mas na verdade os livros não têm dono. Cada livro que você vê aqui foi o melhor amigo de um homem. Agora só tem a nós, Daniel. Você acha que poderá guardar este segredo?
Meu olhar perdeu-se na imensidão daquele lugar, na sua luz encantada. Assenti, e meu pai sorriu.
- E sabe do melhor? - perguntou.
Neguei em silêncio.
- É hábito nosso, da primeira vez que alguém visita este lugar, que escolha um livro, aquele que preferir, e que o adote, garantindo assim que nunca desapareça, que se mantenha vivo para sempre. É uma promessa muito importante. Pela vida afora - explicou meu pai. - Hoje, é a sua vez.
Por quase meia hora perambulei pelos esconderijos daquele labirinto com cheiro de papel velho, pó e magia. Deixei que minha mão roçasse as avenidas de volumes expostos, numa tentativa de fazer a minha escolha. Percebi, entre os títulos pagados pelo tempo, palavras em línguas conhecidas e dezenas de outras que não podia reconhecer. Percorri corredores e galerias em espiral, repletos de milhares de volumes que pareciam saber mais a meu respeito do que eu sobre eles. Aos poucos, assaltou-me a idéia de que atrás da capa de cada um daqueles livros se abria um infinito universo por explorar e que, fora daquelas paredes, o mundo deixava que a vida passasse em tardes de futebol e em novelas de rádio, satisfeito em ver apenas até onde vai o seu umbigo e pouco mais. Talvez tenha sido esse pensamento, talvez o acaso ou seu parente elegante, o destino, mas naquele mesmo instante percebi que já tinha escolhido o livro que ia adotar. Ou talvez devesse dizer, o livro que me adotaria. Ele se destacava timidamente no canto de uma estante, encadernado numa capa cor de vinho e sussurrando seu título em letras douradas que brilhavam na luz vinda da cúpula no alto. Aproximei-me dele e acariciei as palavras com as pontas dos dedos, lendo em silêncio:

A sombra do vento
JULIÁN CARAX

Nunca tinha ouvido mencionar aquele título ou o seu autor, mas não liguei. Minha decisão estava tomada. De ambas as partes. Peguei o livro com muito cuidado e folheei-o, deixando que as suas páginas esvoaçassem ao vento. Liberado da sua cela na estante, o livro exalou uma nuvem de pó dourado. Satisfeito com a escolha, refiz meus passos no labirinto, levando meu livro debaixo do braço, com um sorriso impresso nos lábios. Talvez a atmosfera enfeitiçada daquele lugar se tivesse incorporado a mim, mas tive certeza de que aquele livro estivera me esperando ali anos a fio, provavelmente desde antes de eu nascer.

Naquela tarde, de volta ao apartamento da rua Santa Ana, refugiei-me no meu quarto e decidi ler as primeiras linhas do meu novo amigo. Antes de perceber, tinha mergulhado completamente no livro. O romance relatava a história de um homem em busca do seu verdadeiro pai, a que nunca chegara a conhecer e cuja existência só descobrira graças às últimas palavras que sua mãe pronunciara no leito de morte. A história daquela busca se transformava numa odisséia fantasmagórica onde o protagonista lutava para recuperar sua infância e juventude perdidas, e na qual aos poucos descobríamos a sombra de um amor maldito cuja memória haveria de persegui-lo até o fim de seus dias. À medida que avançava, a estrutura do relato fez-me lembrar daquelas bonecas russas que contêm em si mesmas inúmeras miniaturas. Passo a passo, a narrativa se estilhaçava em mil histórias, como se o relato penetrasse numa galeria de espelhos, e sua identidade produzisse dezenas de reflexos díspares e ao mesmo tempo um só. Os minutos e as horas transcorreram como numa alucinação. Horas mais tarde, aprisionado pelo relato, apenas percebi as badaladas da meia-noite repicando, ao longe, no sino da catedral. Enterrado na luz de cobre que projetava o abajur, penetrei num mundo de imagens e sensações que jamais havia conhecido. Personagens que pareciam tão reais quanto o ar que respiramos arrastavam-me por um túnel de aventura e mistério do qual eu não podia escapar. Página por página, deixei-me levar pelo sortilégio da história e seu mundo, até que o hálito do amanhecer acariciou a minha janela, e meus olhos cansados deslizaram pela última página. Estendi-me na penumbra azul da madrugada com o livro sobre o peito e escutei o som da cidade adormecida pingando sobre os telhados salpicados de púrupura. O sonho e a fadiga queriam me derrubar, mas eu resistia a entregar-me. Não queria perder o encantamento da história nem dizer ainda adeus aos seus personagens.

Certa ocasião, ouvi um cliente da livraria de meu pai comentar que poucas coisas marcam tanto um leitor como o primeiro livro quer realmente abre caminho ao seu coração. As primeiras imagens, o eco dessas palavras que pensamos ter deixado para trás, nos acompanham por toda a vida e esculpem um palácio em nossa memória ao qual mais cedo ou mais tarde - não importa os livros que leiamos, os mundos que descubramos, o quanto aprendamos ou nos esqueçamos - iremos retornar. Para mim, essas páginas enfeitiçadas serão sempre as que encontrei entre os corredores do Cemitério dos Livros Esquecidos."

Como eu disse, é um trecho longo, mas bastante marcante, sobretudo pela capacidade do autor de descrever os cenários e de nos transpor exatamente à mesma situação em que o seu personagem se encontra ao ler o livro escolhido. Um mundo de imagens e sensações jamais conhecidos... Um túnel de aventura e mistério do qual é impossível escapar...

Ainda não terminei a leitura do livro, mas posso dizer que estou gostando bastante.

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